8.000 anos depois de Cristo, final da Era de Escorpião. Diante do Grande Tribunal Cósmico, surge aquela figura patética; um planetinha mixuruca, com um par de muletas mambembes, superfície esburacada, falta de ar, hipertenso, cheio de ataduras aqui e acolá.
– E aí Terra, que contas você tem a nos prestar, depois de todo esse tempo vagando no espaço infinito?
– Bom, hum… quer dizer… eu até que tinha futuro, mas…
–
Vamos, deixe de conversa fiada. Desembuche.
– É, senhores juízes, foi tudo culpa daquela cambada da humanidade.
– Humanidade? Que humanidade?
– Eles, os que viviam em mim, aquela gente, os que tornaram minha vida um inferno… não quero nem lembrar…
– Vamos, Terra, explique-se melhor.
– 10.000 anos antes de Cristo, na Era de Leão, eu estava nascendo, jovem, bonita e saudável. Eu não era mesmo este planetinha acabado de hoje. O homem já existia, mas ainda estava desenhando figurinhas nas rochas, enquanto eu atravessava a última Era Glacial, após inúmeras modificações. Eu tinha tantos planos…
– Sim, e daí?
– Daí veio a Era de Cancer e os homens, que até então eram apenas coletores, caçadores e artistas primitivos, despertaram para a idéia da agricultura e para a organização das primeiras cidades fixas na China, Egito e Mesopotâmia. Só que a confusão começou aí. Eles não queriam apenas sobreviver ou se organizar, mas também e principalmente acumular.
– Acumular o que?
– Tudo. Terras, mulheres, artefatos, alimentos…
– E para que?
– Para que? Ora, para dominar os próprios semelhantes e sujeitar o resto da natureza.
– E depois, o que aconteceu?
– No ano 4.000 antes de Cristo, chegamos à Era de Gemeos e eles conseguiram afinal organizar uma linguagem que permitia a comunicação entre os diversos grupos. Começaram as primeiras fofocas. Além disso, com a popularização do uso da roda, transportavam objetos, pessoas e produtos, mas também atropelavam os vizinhos, suas crianças e galinhas. A poluição verbal, sonora e visual começou aí.
– Sim, e depois?
– Na prática Era de Touro, eles lutaram para estabelecer suas bases culturais, com constancia e durabilidade. O homem na Mesopotâmia tomou conhecimento da astronomia e da astrologia, mas sua dedicação não se limitou a organizar a passagem do tempo. Ele começou a utilizar esse saber para manipular os ignorantes e aumentar o poder dos reis sobre o povo.
– Está bem. Continue.
– Na Era de Áries, eles lançaram os fundamentos da cultura espiritual que persistiu até o final da Era de Peixes. As bases da filosofia védica foram construídas e os grandes livros sagrados da humanidade foram escritos com a intenção de preservar a experiência religiosa, transmitindo-a de geração em geração. Foi também um período de profundas alterações políticas e do aparecimento de novas culturas, como as da Grécia e do Império Romano. Alexandra Magno tentou unificar esse novo mundo, mas o que ele conseguiu mesmo, foi a oposição dos bárbaros que, a partir daí, começaram a destruir tudo em guerras cruentas. A fome e as doenças cobriram minhas imensas e desoladas planícies e o sangue dos mortos corria pelos meus vales, manchando de vermelho minhas águas, que seguiram repletas de escombros e cadáveres.
– Então morreram todos!?
– Não, eles eram danados e resistentes e se multiplicavam como moscas. Apesar de todas essas calamidades, a espécie sobreviveu.
– Hum… e daí?
– Daí lá pela Era de Peixes, mais conhecida como o ano zero, surgiu um tal de Jesus, o Cristo. Fiquei até animada, pois um homem que ensejava uma era, deveria ser muito importante. Acompanhei de perto todos os seus sonhos e projetos.
Era uma noite mágica, de um brilho fantástico, aquela em que ele nasceu. Eu já estava quase dormindo, quando a luz da Estrela de Belém me ofuscou. Fiquei atenta e percebi uma caravana de Reis Magos que, humildemente, prestavam homenagem àquele pequeno ser. Não sei por que mas naquele momento, me senti invadida por uma grande esperança. Fiquei de olho naquele menino. Estive com ele no deserto, chorei com ele no Monte das Oliveiras e acompanhei seus passos até o Calvário e a cruz.
– Cruz, que cruz? Ele não era um bom homem? Ele não veio para trazer a salvação e a paz para todos?
– Pois é… mas acabou na cruz. De corpo e alma. De cabeça e coração.
– Ah!…é?
– É, e eu o recebi em minha casa, ou melhor dizendo, em minhas entranhas. Só que ele era um menino esperto, de rua mesmo. Em poucos dias já tinha ganhado o mundo. Casou-se com uma tal de Madalena, cá para nós uma tremenda puta arrependida e mudou-se para a Europa, aonde teve muitos filhos, que se meteram em empreitadas semelhantes. Mas aí é uma outra história…
– Aliás, por falar nisso, antes Dele passaram por mim uns outros caras semelhantes. Um tal de Buda, um outro Confúcio, Hermes, que se intitulava Trimegistro e também um tal de Zoroastro. Todos se deram mal. Gastaram fortunas, abdicaram de títulos de nobreza, viveram como ascetas, zanzando de um lado para o outro, bêbados de felicidade e sem um “puto” no bolso. Um horror!
– Está bom. Continue. Cuidado com a pressão…
– Aí mataram Jesus e continuamos na Era de Peixes. Em nome desse Mestre, deturpando suas idéias, criaram uma grande indústria, com sede, inclusive, no Vaticano. Tornando-se, com o passar do tempo e através de inúmeras alianças e conluios, uma mega-empresa com ramificações em todos os países do meu lado ocidental. Sobrou apenas o Oriente, que por sua vez, já era dominado por um outro grupo que atuava em nome de Krishna, Buda e outros tantos que, como eu disse antes, se ferraram. Mas deram trabalho.
– E você? Assistia a tudo passivamente?
– Claro que não! Nesse meio tempo, eu produzi alimentos para todos eles, acolhi em meu ventre os seus mortos, saciei a sede de muitos e, algumas vezes, tentei puni-los com terremotos, erupções e maremotos. Mas eles não se emendavam. Alguns sábios da época, conseguiram ler minhas mensagens, mas acabaram nas fogueiras da Santa Inquisição. Não havia escapatória. Qualquer um que se rebelasse contra os dogmas da mega-empresa, era taxado de feiticeiro, discípulo do diabo e assado em fogo ardente. E eu, sentia-me incomunicável, limitando-me apenas a girar silenciosamente, diante daquele terrível espetáculo.
– E depois?
– Depois, eles seguiram brigando e se desentendendo. Inventaram as Cruzadas, “descobriram” novas terras, obstinados com a idéia de expansão, pilhagem e domínio de novos territórios, não se preocupando, em nenhum momento, com o destino das pessoas que eles iam sujeitando e destruindo em suas conquistas. Até que um dia, resolveram organizar um cronograma de guerras. Veio a Primeira e na Segunda, explodiram uma maldita bomba atomica lá no Japão, acabando com duas cidades. Nos intervalos se entregavam a pequenas escaramuças, sempre em nome de alguma causa muito “nobre”, mas eu acho mesmo que era apenas para “matar” o tempo, empestar o espaço e arrasar com as minhas entranhas e esperanças.
E assim, chegamos ao limiar do século vinte e um, início do que eu esperava que fosse a era de ouro desses imbecis. Aquário. Tempo de cooperação. O despertar da consciência global. A liberação dos dogmas e dos grilhões impostos pelo passado ortodoxo.
– Aí as coisas melhoraram, não foi?
– Que nada! Eles, a exemplo das outras eras, também criaram grandes coisas. Ergueram lindas cidades, resolveram o problema dos transportes, do trabalho e da alimentação. Descobriram a cura para as grandes doenças, como o cancer e a AIDS, incrementaram os programas espaciais e voaram para outros mundos, mas… foram escravizados pelo computador.
– Como?
– Tornaram-se frios e apáticos. Insensíveis e meticulosos. O amor acabou. As crianças eram reproduzidas em laboratórios e o orgasmo alcançado com drogas que eram vendidas em todas as farmácias. O beijo desapareceu do mercado e a lágrima secou em todas as prateleiras.
– E você? Não tomou nenhuma providência?
– A essas alturas, eu já havia quase me horizontalizado em meu eixo, derretido minhas calotas polares, numa tentativa de interromper aquela loucura, mas não teve jeito. Eles desenvolveram defesas contra mim. Ergueram diques e, quando tentei asfixiá-los e queimá-los com a passagem do irmão Sol pelo buraco em minha camada de ozônio, eles responderam com potentes filtros solares e, numa viagem rápida, remendaram o estrago feito. Pedi até ajuda a outros irmãos de fora e eles enviaram grandes meteoros para explodir tudo – estava até conformada em desaparecer junto com “eles” – mas os miseráveis inventaram armas ultrasônicas que fragmentaram, a longa distância, os benvindos corpos celestes.
– Mas que racinha, heim?
– Pois é, agora penso que os senhores podem me compreender melhor.
– E você?
– Eu? Fiquei nessa que estou. Já cumpri meu carma. Hoje, ao final desta Era de Escorpião, estou entregando os pontos. Não tenho mais a quem apelar. Os piores continuam governando e o trabalho de conciliação dos melhores, falhou, portanto, quero pedir licença para me retirar do sistema.
– Permissão concedida. Afinal de contas você foi a menos culpada em toda essa história. A humanidade nunca te mereceu.
– Graças! ADEUS!
Fundiu e EXPLODIU.
E, em alguma parte do Universo, lá estão eles, os famigerados homens, cavando, plantando estacas, erguendo réplicas da Muralha da China e do Muro de Berlim; loteando territórios, construindo novas fronteiras, dormindo mais tarde e acordando mais cedo, atentos, na expectativa de aprisionar qualquer ser vivo que, porventura, venha a ser encontrado. E sobretudo aprimorando, cada vez mais, o seu poder de destruição e domínio.
Sonhei com a minha filha mais velha, penteando seu cabelo. Haviam penas pequenas e finas na sua cabeça que eu arrancava devagar. Um lado do cabelo era menor e o outro era maior. Quando olhei no final da nuca, quando puxei uma pena, saiu um pássaro branco de dentro da sua nuca, de pé olhando para mim. O que isso significa?