Ele veio muito bem recomendado por um amigo comum.
- É gente boa, Glória, Pai Pequeno do meu terreiro – afirmou Roberto – e está sofrendo muito. Veja aí o que pode fazer por ele.
Quando eu penso em algum dignatário do Candomblé, vejo sempre uma figura imponente, orgulhosa, com o pescoço repleto de contas misteriosas e os braços marcados por cicatrizes ritualísticas. Mas aquele era a antítese do meu estereótipo.
Gilberto era baixinho, gordinho, vestido com total simplicidade. Tinha o ar perdido de quem procurava há muito tempo respostas que nunca chegavam. Em seus quarenta anos parecia colecionar tantos desgostos que meu coração se apertou ao vê-lo. Como se nada bastasse, não ostentava nenhuma guia e nem sequer veio acompanhado do séquito de espíritos que sempre chegam com esses filhos-de-santo e, não raro, deixam os meus cabelos arrepiados como um porco espinho e a sensação de que a sala foi invadida pelas torcidas de um Fla-Flu. E foi movida por uma profunda empatia por aquele homem tão frágil que iniciei o meu interrogatório:
- E então, qual é o motivo de sua visita?
- Na verdade, dona Glória, não é nada específico. Acho que a minha vida toda é um desastre. Há 15 anos venho buscando um caminho espiritual que me proporcione paz de espírito, um pouquinho de felicidade, mas até agora nada; só desgostos, solidão e traições.
Todos me diziam que eu tinha problemas de “santo” e por conta disso, procurei inúmeras casas. Cada um que mexia na minha “cabeça” dizia que o antecessor tinha feito alguma bobagem. Foi um sem-fim de obrigações, dias e dias de recolhimento, uma fortuna em “obrigações” e nada. A cada dia minha vida piora.
Agora estou num terreiro como Pai Pequeno, uma espécie de assessor da mãe-de-santo, pessoa séria e bondosa, mas nada acontece, dona Glória. Estou cada vez mais infeliz e solitário. Fico também questionando se estou mesmo no meu caminho espiritual. Acho que falta alguma coisa e, para falar a verdade, não gosto muito de cumprir com tanta rigidez as regras impostas pela religião.
Foi Mãe Renata que me recomendou fazer o mapa astral. Disse que, se a questão fosse astrológica, nenhum santo resolveria. Era carma mesmo, dos piores. A senhora é a minha última esperança. Preciso descobrir por que ninguém me ama, por que nenhum homem fica na minha vida mais do que uma semana (sim, ele é homossexual) e por que não me encaixo nessa posição de filho ou pai de santo. Afinal, dona Glória, qual é a minha missão?
- Ah, meu caro, seu eu soubesse…
Mas, olhando o mapa de Gilberto descobri algumas pistas importantes. Na dança dos astros vi que o nosso amigo estava, na verdade, destinado a uma vida de dedicação ao próximo. A sua bondade chegava a ser despropositada. Era um espírito magnífico aprisionado num corpo limitado e portador de uma quase irremediável “miopia emocional”. Quanto às questões do coração, havia sido contemplado com aspectos bastante desagradáveis.
- Você já foi roubado ou vítima de algum calote de seus namorados?
- Nem lhe conto. Já tive os maiores prejuízos. E não foi só de caras que eu conheci numa noite e levei para casa. “Casos” mais sérios também. Até mesmo parentes que me pediram ajuda, acabaram por trazer o maior transtorno. Já paguei dívidas que assumi como fiador, tive o meu apartamento saqueado e destruído pelo noivo da minha sobrinha, após uma estadia compulsória (o rapaz ficou sem ter onde morar) enfim, dessa lição já sou Mestre. E o pior de tudo é que ainda tenho pena dos outros e nem sempre resisto à tentação de ajuda-los.
- Pois é, Gilberto, você precisa evitar essas pessoas.
- Mas dona Glória, fico pensando que preciso fazer o bem, é a minha missão. E o pior é que nem acerto a quem nem aonde dirigir esse desejo. Até no hospital onde eu trabalho…
- Peraí, você trabalha em hospital?
- Ah, eu não lhe disse? Sou auxiliar de enfermagem. Trabalho em quatro hospitais sempre no CTI.
Desliguei o computador e abri as minhas cartas. Lá estava ele – O Eremita – bem na casa que simboliza a missão, o desafio do espírito, o que está oculto. Voilá! Estava explicado.
Olha, vocês que curtem astrologia por ser uma “ciência”, não imaginam o quanto o tarot lhe é superior quando o assunto é “humanidade”. Nenhum outro oráculo é capaz de tocar tão fundo o coração e a alma de alguém – benditas cartas.
Daí em diante iniciei um longo questionário sobre o tipo de trabalho que Gilberto fazia. Perguntei-lhe qual era a sua relação com os pacientes.
- Bem, nem sempre eu consigo fazer um contato. Sabe como é, gente no CTI está à beira da morte. Sou atento, quase obsessivo nos cuidados, mas quando posso, costumo tratar as pessoas com o maior otimismo, animando, brincando, até mesmo ralhando quando estão desanimadas. Gosto muito do que faço; não tenho nojo, medo ou desprezo como tantas vezes observo nos meus colegas e até mesmo nos médicos. À vezes, no silêncio das madrugadas fico sentado ali, olhando aquelas camas, ouvindo o barulho dos monitores e pensando como é estranho esse nosso trabalho. Sinto como eu seu fosse uma espécie de corretor, um agente entre a vida e a morte. É uma grande responsabilidade, dona Glória; qualquer movimento em falso, um erro bobo, pode significar a diferença entre o paciente sair ou ficar nessa vida. Mas, apesar dessas pequenas angústias, não consigo me imaginar fazendo outra coisa. Aliás, se mais tempo eu dispusesse, teria outros empregos em CTI.
E enquanto falava, Gilberto estampava no rosto uma expressão de beatitude; olhos brilhantes e bondosos e um pequeno sorriso de humildade. Intimamente eu ria com carinho daquela situação. O homem não percebia que a sua missão já estava em andamento. Nada havia a acrescentar.
- Acho que você não está se vendo, enxergando a sua realidade. Você já está no caminho, Gilberto e dos mais nobres. Você não precisa de terreiros, quartinhas, mãe ou pai-de-santo, obrigações, guias. Você é um legítimo sacerdote, um Cavaleiro da Luz.
E ele, lançando-me um olhar incrédulo.
- Ué, mas então por que eu não me encontro no amor? Por que a minha vida espiritual é tão confusa?
- É por que você está buscando o amor no lugar errado e entregando o seu espírito a pessoas inferiores a você. Nem todos vieram a Terra para encontrar um parceiro, casar. Isso é coisa imposta por uma sociedade hipócrita. Você mesmo encontra tanto amor em seu trabalho. Quem sabe se é desse amor que você precisa? Não, não estou aconselhando-o a se tornar um santo, ao contrário, mas os prazeres do sexo e da boa companhia também podem acontecer sem maiores compromissos, não é? Você já teve inúmeros exemplos negativos quando tentou aprofundar relacionamentos. Por que será? A vida está falando com você, amigo. Seja um bom ouvinte.
- Mas o que a senhora está dizendo, mudaria completamente a minha perspectiva de vida.
- E por que não mudá-la se você anda tão insatisfeito com a que tem?
- É, pode ser, devolveu-me Gilberto com um olhar pensativo. E sabe de uma coisa? Acho que vou me desfazer de todos esse badulaques de santo. Não suporto mais tanta pressão. A senhora acha que eu posso ser castigado?
- Se você acreditar nisso, sim, conclui, mas tenho certeza de que o castigo virá apenas como fruto de sua mente culpada e medrosa. Não seria um absurdo acreditar em deuses malvados e vingativos? Ora faça-me um favor!
- Não vai ser fácil deixar “cair essa ficha”, mas o meu coração está dizendo que é hora de dar um tempo e refletir sobre esse novo caminho. De qualquer maneira, vou precisar muito da senhora nesse processo. Posso contar com isso?
- Claro, Gilberto, só que o caminho não é novo, você foi quem o enxergou apenas agora e, como já dizia o bom e velho Marçal, sambista da melhor qualidade, hoje no “andar de cima”: “ QUEM NÃO SABE O QUE PROCURA, QUANDO ENCONTRA NÃO RECONHECE”.
Obs: Todos os nomes e locais citados são imaginários, visando a proteção das pessoas envolvidas nessa história real.
Ai, que saudade de suas consultas… Sempre abrindo os olhos da gente!!!
Abençoada seja a sua missão com as cartas e os astros!
Beijos, querida!
Você nem tem razão para essa saudade. Sabe o quanto te amo e estou disponível para a sua visita.
Beijossssss!
Valéria Wright escreveu:
Somos assim mesmo,,, viveos uma busca frenética de algo que nao sabemos bem o que é qdo achamos estamos tao cegos pela busca que na verdade que nao enxergamos nada.
Este comentário foi removido pelo autor.
Esta linda historia serve de reflexão e para a gente dar uma calibradinha nas nossas lentes ou mudar o nosso jeito de olhar! Obrigada Gloria. Beijo.
É Glória, me identifiquei muito com essa estória. Fiz enfermagem, mas por motivos diversos não posso me dedicar a profissão. Mas durante os estágios me dediquei bastante. E minha vida é uma paulada atrás da outra, cirurgias e outros bichos.Mas não deixo esses problemas, inclusive amoroso, atrapalhar meu viver. Bjsss e obrigada por compartilhar essa estória.