Eles se conheceram em meados dos anos setenta.
Ela, moça pobre, quase desamparada, morando numa república na Zona Sul, se virando para pagar a faculdade, que era particular, mas, segundo os anúncios da época, promissora. Era bonita sim, mas com certo ar de vira-latas, sempre a bordo de suas roupas baratas, compradas em liquidações no centro da cidade..
Ele, funcionário público, um técnico mal remunerado, suburbano, baixinho, cara de árabe, barba serrada, que repetia a mesma velha calça de veludo cotelê, fosse inverno ou verão. Na camisa pólo de sempre, revelava as inevitáveis bolinhas no colarinho, fruto de muitas lavagens.
Sob a luz fraca da cantina da faculdade, eles se olharam pela primeira vez. A atração foi imediata. Ele se aproximou, ofereceu um café? Puxou do maço um cigarro e disse:
-Vai?
E ela foi.
E nos dois anos seguintes eles viveram um romance incandescente. Mal podiam ficar separados. Ele a levava até em casa todos os dias após a faculdade e fazia a viagem de volta ao seu suburbano lar sem jamais reclamar, ao contrário, o tempo era pouco para os agarramentos nos bancos de trás dos ônibus.
Fim de semana ele chegava cedo. Ficava por ali só observando, louco para que as companheiras de apartamento dela saíssem para que, finalmente, pudesse se amar despudoradamente no quarto, na rede da sala e às vezes, quando as meninas teimavam em ficar em casa, escapavam para o corredor do prédio e… Era amor prá todos os lados. Nada podia conte-los. Eles pouco falavam – se entendiam por olhares, toques. Seus odores se fundiam se entendiam se completavam. O mundo lá fora não fazia sentido, apenas aquele universo apaixonado existia. Eram como almas gêmeas, siameses, que finalmente se reencontravam.
Na faculdade, tudo ia bem. Estudavam em classes diferentes e quando um professor faltava, ela ou ele migravam para as salas um do outro e procuravam um lugar para, juntos, assistirem a aula, esfregando coxas, mãos entrelaçadas por debaixo da antiga carteira.
Mas, o Destino é caprichoso, as Moiras implacáveis e, em uma dessas noites, a mulher da Secretaria entrou esbaforida na sala onde o casal estava. Chamou o rapaz pelo nome:
- Roberto da Silva, quem é?
Ele, assustado se levantou:
- Sou eu.
Ela:
- Venha rápido à Secretaria! A sua esposa está ao telefone dizendo que o seu cachorro mordeu o filho do vizinho!!!
O Mundo parou. Uma cratera se abriu bem ali, diante dos olhos dela. Ele, pálido como um cadáver, por um momento lhe dirigiu uma expressão de horror e saiu porta afora rumo à verdade que finalmente se revelara. Ele era casado!
Ela saiu chorando. Chegou em casa sem ao menos saber como. Não falou com as amigas. Apenas chorava e chorava um rio de lágrimas que só uma mulher traída é capaz de verter.
Nos dias que se seguiram, ela não foi trabalhar. Não apareceu na faculdade. Só queria chorar. Estava viúva do seu grande amor. Perdeu o emprego, perdeu o semestre, perdeu a esperança.
Enquanto isso, ele ligava para as colegas dela, ia diariamente ao apartamento, onde era recebido por três caras feias, amigas convertidas em escudos protetores, ouvindo sempre a mesma resposta, antes que a porta lhe fosse sonoramente batida na cara:
- Ela não quer lhe ver!
Dois meses se passaram. Ela já não tinha mais um tostão, precisava pagar as contas, voltar a estudar e, reunindo as forças que lhe restaram, saiu de casa em busca de emprego. Conseguiu. Voltou à faculdade. Quem estava lá? Ele é claro!
Não foi preciso muito para que se reconciliassem. Na verdade, como sempre fora, quase nem conversaram. Saíram naquela noite direto para um motel vagabundo e…
Agora tudo estava às claras. Ele tinha esposa, três filhos, um emprego com horários flexíveis – em turnos e, logicamente, não tinha a menor esperança de assumir uma nova família.
E o tempo foi passando. Ela conheceu um moço bom, solteiro, formado, ansioso para se casar. Ainda assim, por mais um ano ela manteve aquela situação dupla. Ele era como um veneno sem antídoto.
Os arranjos para o casamento estavam a pleno vapor até que, na véspera da cerimônia, ela ligou para ele:
- Amanhã eu me caso, mas se você disser que não, eu juro que desisto.
E ele com uma expressão de dor profunda, fechou os olhos, derramou uma lágrima e respondeu:
- Case sim. Eu não tenho nada a lhe oferecer.
E ela assim o fez.
Nos próximos cinco anos eles não se encontraram. Ela queria muito que o casamento desse certo. Só que não deu. No apagar das luzes da separação, ligou para ele. Marcaram um encontro em um bar, mas nem chagaram a sair do carro dela. Foram tantos beijos, tantas lágrimas silenciosas… Era como se jamais houvessem se separado.
- Sabe, naquele tempo eu não tinha a menor condição de me separar, disse ele, mas as coisas agora estão melhores, as crianças mais maduras. Vamos tentar?
E aí, foi a vez dela pensar. Estava se divorciando, querendo ficar só, purgar a decepção. Seria bom se envolver com um homem já com família, filhos ainda dependentes? Era justo construir a sua estória sobre a destruição de outra vida? Não quis.
Ao se separarem, ele disse uma única frase:
- Nós ainda vamos bater bengalas juntos. Quero envelhecer com você.
E a vida seguiu.
Quase duas décadas depois eles se reencontraram. Ela era muito conhecida e ele não teve dificuldade em localizá-la. Após uma rápida ligação, combinaram que se veriam no escritório dela.
Aquele homem era agora um senhor, cabelos grisalhos, barriga ainda mais proeminente. Ela também, apesar de bonitona, exibia as marcas que o tempo deixara.
- Nossa, como você está bonita! Disse ele ainda na porta.
- Você também, parece que o tempo não passou. Ainda tem até cabelos ….
Os dois riram. Ele entrou e começou a contar sobre a sua vida. A formatura dos filhos, a aposentadoria, o enfarte sofrido, o quanto ainda pensava nela. E quando deram por si estavam abraçados, aos beijos, com o mesmo calor, a mesma paixão que os unira há tantos anos atrás, naquela cantina escura da faculdade.
Ela, já estava casada pela terceira vez. Tinha filhos, estava feliz com o companheiro, mas não era a mesma coisa. Naquele coração ainda habitava o espectro vivo aquele homem.
- É, parece que agora é tarde, disse ela. Nossas vidas tomaram caminhos tão diferentes. Estou bem. Feliz não digo, mas bem e é assim que desejo ficar.
E ele, num meneio da cabeça grisalha, respondeu:
- Não tem importância. Sei que ainda vamos bater bengalas juntos.
Mais dez anos se passaram. Anos silenciosos. Até que numa noite, ela acordou sobressaltada:
- Ai meu Deus! Aconteceu alguma coisa com o Roberto!
Ela havia sonhado com ele, jovem como nos anos oitenta, com a mesma calça de veludo cotelê, a mesma camisa de gola puída. A diferença estava apenas nos olhos tristes.
- Eu vim te pedir desculpas, disse quase entre dentes. Um dia eu lhe prometi que haveríamos de bater bengalas juntos, mas não consegui. Você me perdoa? Promete que nunca vai me esquecer?
E foi com essa estória que ela chegou ao meu consultório. Queria que eu visse nas cartas do tarot, se o grande amor da sua vida ainda estava vivo.
A carta 13, o temido arcano da Morte, se apresentou logo na primeira virada dos arcanos. Nem precisei dizer nada. Ela olhou fixamente para a carta, baixou os olhos, abriu a bolsa e puxando de dentro dela uma carteira, separou o dinheiro da consulta que, delicadamente, depositou sobre a carta.
As lágrimas corriam em seu rosto maduro quando levantou e se dirigindo a porta de saída, olhou dentro dos meus olhos e disse:
- Obrigada, Glória. A vida quase nada me ficou a dever, a não ser o privilégio de viver um amor verdadeiro. Vai ver, eu não mereci, não é?
A Roda do Destino é assim: Trás, leva, trás, leva e às vezes não devolve nunca mais. Por que? Vai entender…
Muito lindo! Gostei demais! Fraterno abraço!
Glória, essa estória é emocionante. Estou sempre acompanhando seus vídeos e posts. Posso dizer que essa me arrancou suspiros e muita emoção. Aos 10 anos conheci um rapaz, fiquei encantada. Mesmo sabendo ser prematuro demais, aos 11 começamos a namorar escondido. Como era de se esperar, nos separamos logo depois. Me mudei sem poder dizer adeus, pra um lugar que nem sabia que existia no mapa. Enfim, nossos caminhos se separaram. Aos 16, por puro acaso da vida, nos encontramos mais uma vez. Novamente engatamos um namoro, mas não escondido. Foi muito bom, mas mais uma vez o destino o levou de mim. Casei, ele casou, tive filhos, ele também, e nos reencontramos cinco anos mais tarde. Ele ainda casado, eu também. Não tivemos coragem de nos arriscar. Três anos se passaram e ele me procurou. Eu já pensava que ele nem lembrasse de mim. Disse que não me esquecia, e eu sempre pensava nele. Eu estava no Brasil, ele na Coreia do Sul. Era uma situação bem atípica pra mim. Recomeçamos nessa distância mesmo. Quando enfim retornou ao Brasil, nos encontramos. Minhas pernas tremiam, as mãos dele também, não saiu uma palavra sequer, apenas um longo e amoroso abraço. Jamais esquecerei desse dia, foi lindo. E desde então decidimos ficar juntos. Estamos há 4 anos casados, felizes e planejando um novo membro pra essa família fora dos padrões,rs. Ao ler essa estória, lembrei um pouco da minha. E agora, mais do que antes, sinto um alívio por não ter deixado esse amor me escapar mais uma vez. Obrigada por partilhar essa estória. Abraços,
Renata R. Ribeiro